Os relatos sobre as dificuldades no ensino, principalmente, com o uso das máscaras, têm sido crescentes. O próprio adulto, que viveu vários anos sem barreiras visuais à comunicação, sente, hoje, dificuldades em compreender o que é dito e até “tira a máscara para ouvir melhor”. Parece estranho, mas a verdade é que tendemos a realizar no nosso próprio corpo os mecanismos que nos deixam desconfortáveis (tirar comida dos dentes quando a vemos nos dentes da pessoa à nossa frente, arranjar a gola da nossa camisa quando a gola da outra pessoa está metade virada para dentro, …).
No entanto, as crianças têm sentido algumas dificuldades na comunicação, mas nem sempre têm ferramentas para transmitirem o desconforto sentido. Sabem que algo não está bem e as deixa desconfortáveis, mas não têm forma de o dizer, a não ser arrancando as máscaras da cara do adulto, como muitas fazem. Outras, até as voltam a colocar no rosto do adulto porque não estão habituadas àquele rosto livre e cheio de informação.
“Estaremos nós a alterar os padrões de desenvolvimento considerados ´normais` até então?”
Desenvolvimento da Comunicação e da Linguagem
Vários estudos sobre o desenvolvimento da criança estabelecem relação entre a idade e a aquisição de determinada competência. Num desenvolvimento dito “normal”, a criança deverá seguir com o olhar objetos brilhantes, como espelhos e luzes, e de cores contrastantes desde o primeiro mês de vida.
Perto dos três meses já reconhece o rosto dos seus familiares e a visão começa a ficar apurada para expressões faciais e para a forma como se mexe a língua do adulto. Procura frequentemente reproduzir sons que o adulto faz, mas, na maioria das vezes, coloca a língua de fora e ri-se porque é a maior informação visual a que tem acesso. Desde muito cedo aquilo que vemos e ouvimos interfere com o nosso desenvolvimento motor, emocional e cognitivo.
Marcos importantes no desenvolvimento da Comunicação e Linguagem
Durante o primeiro ano:
- Reagir ao nome e à variação da entoação da voz;
- Dirigir o olhar para os brinquedos, alternar o olhar entre o adulto e os objetos, olhar para o adulto à espera de uma resposta;
- Produzir as primeiras palavras (normalmente “mama”, “papa”, palavras com maior informação visual dos lábios).
Até aos 18 meses:
- Produzir pelo menos 15 palavras com referente;
- Compreender instruções simples.
Aos 2 anos:
- Vocabulário de pelo menos 200 palavras;
- Começar a formar pequenas frases;
- Estabelecer pequenas conversações sobre o que está a ver;
- Compreender instruções com dois itens (p.ex. “pousa isso e anda cá”);
- Responder a questões;
- Chamar as pessoas mais próximas pelo nome.
Aos 3 anos:
- Ter discurso pelo menos 50% percetível para pessoas fora do círculo familiar;
- Vocabulário de pelo menos 400 palavras;
- Construir frases com pelo menos 5 elementos;
- Inicia a idade dos “porquês” e são colocadas questões sobre o meio envolvente.
Aos 4 anos:
- Produzir corretamente praticamente todos os sons da fala em todas as palavras;
- Vocabulário de pelo menos 600 palavras;
- Recontar acontecimentos com alguns detalhes.
Dos 5 aos 6 anos:
- Produzir corretamente todos os sons da fala em todas as palavras;
- Conversar com mais do que uma pessoa ao mesmo tempo sobre temas abstratos e que não estejam a acontecer no momento;
- Discurso semelhante ao do adulto.
Atualmente, temos crianças que nasceram em plena pandemia e passam 2/3 do seu dia privadas de milhares de informações visuais que ajudam na organização e consolidação das suas aprendizagens. Muitas dessas crianças têm hoje 18 meses e o leque de palavras produzido é muito reduzido ou praticamente inexistente.
“Estarão estas crianças prontas aos 6 anos para iniciar o processo de aquisição da leitura e escrita?
Conseguirão estas crianças desenvolver mecanismos para que a sua fonologia (área da linguagem que dá um significado aos sons) se estabilize e siga os parâmetros esperados?”
Aos 24 meses a criança deverá começar a juntar palavras para formar pequenas frases. Do contacto que tem sido estabelecido com várias creches e outros colegas que lidam com o desenvolvimento da criança, percebemos que esta tem sido uma realidade cada vez mais distante.
Com a pandemia, têm-se considerado “normais” padrões de desenvolvimento na comunicação e na linguagem, que representam um atraso significativo no desenvolvimento esperado nas crianças.
A fala é a componente mais visível da linguagem. No entanto, o seu desenvolvimento é influenciado pelas competências comunicativas que passam por estabelecer o contacto ocular com os outros (para compreender, por exemplo, através do rosto do adulto se ele está zangado ou contente), imitação de comportamentos, incluindo, expressões faciais (altamente comprometidas com o uso da máscara), utilizar gestos, como o apontar, entre outros.
Cada vez temos mais crianças que não utilizam de forma funcional o contacto ocular porque a única fonte de informação que têm disponível no rosto do adulto são os olhos. Parece um contrassenso, mas ninguém consegue estar a conversar com outra pessoa olhando exclusivamente para os olhos. Dar-nos-ía um aspeto obcecado e forçado, causando desconforto na outra pessoa. Ora, as crianças também não se sentem confortáveis a olhar exclusivamente para os olhos do adulto. Esse desconforto é, claramente, esbatido quando o adulto baixa a máscara para fazer uma brincadeira e mostrar um sorriso. Tudo muda rapidamente no rosto da criança e passa a acontecer a verdadeira COMUNICAÇÃO.
No meio de tudo isto, temos as crianças que já nasceram com algum tipo de perturbação no desenvolvimento e que, por esta altura, estaria a destacar-se negativamente entre os seus pares. Comportamentos como atraso na fala, dificuldade na interação com os pares, dificuldade de permanência em pequenas atividades, dificuldade no contacto ocular, obsessão por ecrãs, são hoje considerados comportamentos normais, sendo, por isso, desvalorizados.
ATENÇÃO, continuamos a ser seres humanos, precisamos uns dos outros para crescer e isso não deveria representar um tormento no desenvolvimento, mas sim uma necessidade.
ATENÇÃO, estávamos a caminhar num sentido muito rico, onde todos os profissionais, médicos, educadores, pais, cuidadores, todos, estavam muito sensibilizados para os sinais de alerta e cada vez mais cedo tínhamos crianças a frequentar os apoios potenciadores do desenvolvimento. Não queremos perder isso, as crianças precisam desse trabalho em equipa.
Não deixemos de procurar ajuda com profissionais especializados, capazes de despistar os sinais importantes para um acompanhamento adequado da criança em todas as fases do seu desenvolvimento.
É preciso ver a árvore no meio da floresta, para que a floresta continue a crescer com todas as árvores.